Monday, May 21, 2007

A triste sina de ser Guarda-Redes: Introdução

Desde que há futebol, há guarda-redes. Claro que desde o início dos tempos foram sendo sujeitos a umas certas evoluções, como o progressivo abandonar da boina ou a introdução das luvas. Apenas um ou outro tradicionalista resistiu à inovação, não abnegando as suas origens, como é exemplo o grande guardião Ewerton.

Podemos dizer então que os guarda-redes, juntamente com os médios, os defesas e os avançados, são os dinossauros do desporto rei. No entanto, as outras posições evoluíram de maneira dramática, enquanto que o homem entre os postes se manteve quase intocável. Podemos então chamar aos guarda-redes as baratas do futebol, dada a intocabilidade dos seus cânones.

O que quero eu dizer quando afirmo que as outras posições mudaram dramaticamente, pergunta o leigo leitor. Resposta-mais-do-que-óbvia: novamente através de um exemplo, podemos ver que o que começou como um simples centro campista, vulgo médio, hoje em dia se ramificou em uma série de diferentes posições. Médio centro, médio ofensivo, médio box-to-box, trinco, médio ala, médio para fazer número (caso de Costa no Manchester-Porto, ou Mahon no Real Madrid-Sporting, ou mesmo Michael Thomas em qualquer jogo do Benfica na era Souness), etc. Até a posição de avançado, simplesmente o jogador que joga perto da baliza com o objectivo de marcar golos, hoje em dia pode ser Ponta de Lança, Extremo, avançado móvel que apoia o ponta de lança, e mesmo jogador perdido no meio do campo que mais vale estar lá à frente do que cá atrás onde pode ser perigoso (óbvia alusão a Missé-Missé).

Mas o verdadeiro drama está na zona defensiva, em que o jogador que antigamente era apelidado única e exclusivamente de defesa, hoje em dia sofre com uma traumática crise de identidade.
Vamos dar um exemplo de uma hipotética conversa entre José Leal, defesa polivalente que fez nome no Sporting, e o seu mister no Felgueiras na longínqua época de 95/96, Jorge Jesus:


JJ: Schhhh!* Ó Leal, porque choras meu rapaz?
* Efeito sonoro de Jorge Jesus a sorver a saliva, para falar mais claramente.

JL: mister, não sei quem sou!

JJ: Ah… tava mais à espera que só me pedisses uma pastilha…

JL: mister, tem que me ajudar nesta cruzada em busca da minha identidade perdida!

JJ: ok, ok. Mas vamos no teu carro!

JL: diga-me… QUEM SOU EU???

JJ: És o Zé Leal, defesa do Felgueiras, dono de um pé esquerdo temível, e possuídor de uma carcaça alta e esguia.

JL: Isso… isso é o que diz no papel! Eu quero é saber… que tipo de defesa sou???

JJ: Epá!!! Nunca enveredes por esse buraco negro do futebol actual, meu rapaz. Isto é um conselho de quem tem muita época neste cabelo grisalho.

JL: Pode-me então só dar um catálogo de posições defensivas, e eu ponho uma cruzinha nas que quero ser?

JJ: Por ti, Zé, tudo!


Mas quantas posições poderá haver, pergunta novamente o leitor? Citando apenas algumas, dado que o total (rezam as crónicas) está perto de infinito, temos o central, o central de marcação, o central descaído para a direita e para a esquerda e o central que fica no meio numa táctica de três defesas, o libero, o sweeper, o defesa lateral (direito e esquerdo), o defesa lateral subido devido à táctica de três centrais e dois laterais que fazem todo o flanco, o defesa que só joga para lesionar adversários, entre muitos outros…


Tudo isto para justificar a atribuição do prémio “barata do futebol” aos guarda-redes. Vamos agora alongar-nos um pouco mais sobre esta posição, até àquilo que eu gosto de chamar como “top 10” dos guarda-redes que jogaram em Portugal na década de 90.
O guarda-redes da nossa selecção e do Sporting, Ricardo, aquando da sua transferência para Alvalade, disse uma enigmática e já famosa frase:

“Sou o homem mais feliz da minha vida”

Isto dá-nos que pensar, logo vamos abrir aqui um exercício interactivo livro-leitor. Você vai parar por um momento para ponderar sobre esta frase. Será que também é o homem mais feliz da sua vida? Todas as probabilidades apontam para isso, dado só haver você na sua vida! A não ser que seja esquizofrénico, e aí a doutrina divide-se.
Partindo do princípio que não o é, estamos perante um acontecimento muito comum no futebol, designado por «Verdades de La Palisse».
E aqui entra nova “RT”, para ser utilizada não em campo, mas perante os órgãos de comunicação social:


RATOEIRA TÁCTICA NÚMERO 10: O “EFEITO DE LA PALISSE”

A resposta certa a qualquer pergunta de um jornalista é uma verdade de La Palisse.


Passando a uns exemplos concretos, temos autênticos mitos la palissianos, como “o jogo tem noventa minutos e pode acontecer um golo do primeiro ao último”, ou “a equipa não jogou bem nem mal, antes pelo contrário”. Há, no entanto, uma verdade que é mais verdadeira do que as restantes, que vou desde já apelidar de Rainha de La Palisse. A frase em questão é uma pequena pérola, e sozinha daria material para reflectirmos durante todo um livro, mas infelizmente não vai dar.


Rainha de La Palisse:

“se marcarmos mais golos que eles, ganhamos”


Já li os exemplos, mas agora como hei-de aplicá-los na prática, pergunta o leitor aspirante a treinador. Nada mais fácil. Escreva na mão 5 verdades de La Palisse, e depois siga a técnica da resposta cruzada e interpolada, ou seja, nunca dê respostas seguidas. Por exemplo, resposta 1 – resposta 3 – resposta 5 – resposta 2 – resposta 4, prosseguindo com o sempre aliviante “obrigado meus senhores” (com um ar superior), e saindo da sala de imediato, não dando hipóteses a novas perguntas, senão cairá no erro de responder a duas perguntas diferentes com a mesma resposta (o que exige alguma perícia e não é recomendado a treinadores maçaricos).
Tratam-se de respostas vagas, que deixam tudo em aberto. Mesmo que a resposta escolhida não encaixe bem na pergunta efectuada, o jornalista apenas ficará estupefacto e será ultrapassado por um colega de profissão ávido por lhe sacar alguma informação relevante.
Passando a um exemplo de uma conferência de imprensa após um jogo que terminou empatado (diálogo entre o mister e os repórteres):


R: Comentários à partida?

M: Foi um jogo tipicamente atípico! (la palisse número 1)

R: Está-se a queixar da arbitragem?

M: Todas as jornadas a situação repete-se, logo nem vou falar sobre isso. (la palisse número 3)

R: E em relação às inúmeras oportunidades falhadas pelos seus jogadores?

M: Eu e os meus jogadores temos como principal característica darmos sempre 110% em campo. O problema são as situações extra-futebol que não nos permitem ir mais além. (la palisse número 5)

R: Acha que o facto de dois jogadores titulares terem rescindido contrato a meio da semana criou mau ambiente no seu balneário?

M: O futebol é um jogo de 11 para 11, e estou muito feliz por poder apresentar jornada a jornada uma equipa inicial na qual deposito toda a minha confiança. (la palisse número 2)

R: Sente o seu lugar ameaçado?

M: Sabe que há certas situações que fartam no futebol, mas o amor pelo jogo supera tudo, e estou de corpo e alma no clube. (la palisse número 4). Obrigado meus senhores!


Como devem ter percebido, qualquer resposta encaixa-se aceitavelmente na maioria das questões. Para comprovar isso, podem tentar outra sequência de respostas, como por exemplo o sempre irreverente 4-1-3-5-2!
Nada mais simples, dirá o comum leitor. No entanto, o que parece simples ao estar a ler na sua poltrona poderá tornar-se num autêntico bicho-de-sete-cabeças, quando confrontado com a situação real. A pressão de ler a cábula e de aparentar um ar sério e confiante pode ser extenuante para um treinador pouco rodado. Uma situação comum é o erro de permitir a sexta pergunta. A maior parte dos treinadores congelam em vez de escolher nova resposta aleatória, pois consideram a repetição inimiga da genialidade que presumem possuir. No entanto, se fossem realmente génios, não teriam as cábulas escritas na mão.

Vamos dar um exemplo comum do mister que entrou numa transe de ignorância, ao permitir a sexta questão:


M: … obrigado meus senhores!

R: os lenços brancos, então, não o assustam?


O treinador calmo repetiria a aleatoriedade:

M: Eu e os meus jogadores temos como principal característica darmos sempre 110% em campo. O problema são as situações extra-futebol que não nos permitem ir mais além. (la palisse número 5)


No entanto, o efeito-surpresa por vezes apanha o mister menos astuto com “as calças para baixo”. Aí respostas erradas (sinónimo de não-vagas) surgem:

M: Foi sem querer, a sério. A culpa é da merda do avançado que não marca e o guarda-redes que só dá abébias.


E pronto, lá se vai uma carreira por água abaixo devido a um mísero lapso de concentração. Os jornais irão apelidar o treinador de menino da mamã, e será para sempre rotulado como um queixinhas que deita a culpa nos jogadores.
A lição a extrair deste exemplo é que, mesmo perante níveis avassaladores de pressão, nunca abandonar La Palisse! Manter a calma e as generalidades debaixo de fogo é decisivo para chegar a bom porto, qual John Rambo, no meio da guerra, que ao perder um braço diz aos colegas para não se preocuparem que é só um arranhão! Manter a calma e a confiança do grupo é fundamental, mesmo se formos péssimos treinadores. Eis a filosofia de Carlos Manuel.

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